centenario | Álvaro Cunhal sobre Lénine, a Revolução de Outubro e a URSS

Intervenção de Rui Mota

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Intervenção de Rui Mota

«Ao comemorarmos a Revolução de Outubro e ao darmos um balanço às transformações revolucionárias que desde então se verificaram no mundo, nós, comunistas portugueses, lembramos que em Portugal, como em todo o mundo, a luta da classe operária e das massas populares [...] está indissoluvelmente ligada ao triunfo da primeira revolução socialista e às vitórias históricas do país dos sovietes.»

Álvaro Cunhal proferiu estas palavras em 1967, quando se comemoravam 50 anos sobre a Revolução de Outubro. À época, Portugal estava ainda dominado pelo fascismo e envolvido na guerra colonial havia mais de seis anos. No plano mundial, o campo socialista correspondia a um terço da humanidade e o imperialismo procurava resistir das mais diversas formas, incluindo o uso da força, como prova a guerra no Vietname que então se desenrolava. No movimento comunista internacional desenvolvia-se um intenso debate ideológico em torno da avaliação das próprias forças, das do inimigo e a estratégia a desenvolver.

Cinquenta anos depois, a situação nacional, mundial e do movimento comunista internacional é muito diferente. Mas é possível tirar importantes e úteis ensinamentos para os dias de hoje a olhar para «[o] triunfo da primeira revolução socialista e [para as] vitórias históricas do país dos sovietes» através das obras de Álvaro Cunhal.

A sua obra é incomparável no contexto político nacional e é de um imenso valor e actualidade para os revolucionários de todo o mundo. Por essa razão, as Edições «Avante!» decidiram organizar uma antologia de textos que, estando todos publicados, se encontravam dispersos.

O primeiro aspecto a realçar dessa antologia é que ela se trata de uma amostra. Significativa, cremos, pois tem em conta a sua vasta obra publicada em artigos, relatórios, discursos e livros ao longo de mais de sessenta anos, mas não inclui todos os textos nem todas as reflexões de Álvaro Cunhal sobre o tema. No que pode parecer contraditório, destaca-se também o facto de não serem muitos os textos de fundo sobre a Revolução de Outubro ou sobre a URSS. Ao estudar a obra de Álvaro Cunhal, é muito claro o cumprimento dessa tese de que o essencial é transformar o mundo, e por isso é muito mais preponderante a análise ao fascismo em Portugal, à luta desenvolvida pelo movimento operário e democrático português, à revolução portuguesa e à resistência à contra-revolução, à preparação política e orgânica do Partido Comunista Português.

Vamos procurar nesta intervenção dar a conhecer um pouco da reflexão de Álvaro Cunhal sobre a Revolução de Outubro, a União Soviética e Lénine, usando essencialmente as suas palavras, e em dez temas que em grande medida se entrecruzam. Como vai ficar quase tudo por dizer, esperamos que a vontade de conhecer e aprender mais, tão natural aos comunistas, permita ultrapassar estas nossas limitações.

Comecemos:

«O século XX fica assinalado para sempre pela revolução russa de 1917, pelo poder político do proletariado e pela construção duradoura, a primeira vez na história, de uma sociedade sem exploradores nem explorados.» Esta frase condensa «o valor, o alcance, o significado histórico das realizações — no domínio económico, social, político e cultural — da URSS e dos outros países socialistas», que foram «um factor de inspiração para a classe operária e amplas massas populares do mundo capitalista na luta pela paz, a democracia e o socialismo». Com o rápido desenvolvimento da Rússia, que se transformou num país atrasado numa das grandes potências mundiais, com a força do seu exemplo, e com as muitas lições que se podem retirar de um processo revolucionário, «uma onda de revoluções de libertação nacional percorreu o mundo».

O contributo da URSS para a luta dos povos pela sua libertação e pela paz verifica-se tanto pelo seu papel na derrota do nazi-fascismo durante a Segunda Guerra Mundial – como diz Álvaro Cunhal, «só quando se tornou evidente, com o avanço das tropas soviéticas, que a União Soviética estava em condições e a caminho de libertar toda a Europa com as suas próprias forças — só então as tropas britânicas e norte-americanas desembarcaram na Normandia» – como pelo seu apoio aos movimentos de libertação nacional em todo o mundo e para o desenvolvimento da luta pela paz. A dimensão dessa luta era tal que levou Álvaro Cunhal a considerar que, «Depois da formação do sistema mundial do socialismo, a liquidação do sistema de escravidão colonial [era] o acontecimento histórico de maior importância da nossa época.» Mas tal acontecimento, sendo «resultado da luta heróica dos povos respectivos», só foi possível com «as realizações e vitórias da URSS, [com] a ajuda da URSS, assim como [com] a criação do sistema mundial do socialismo e [com] a solidariedade da classe operária dos países capitalistas». Como, aliás, Portugal e a libertação dos países submetidos ao seu jugo colonial são bom exemplo.

Sem dúvida, tais processos só foram possíveis com essa solidariedade, mas contaram grandemente com um instrumento que passou a estar disponível aos revolucionários de todo o mundo, «uma teoria que não só explica o mundo mas indica (como um guia para acção) a necessidade, a possibilidade e o caminho para transformá-lo. Que aponta a necessidade e a inevitabilidade, por leis objectivas do desenvolvimento social e pela luta dos povos, da substituição do sistema capitalista por um novo sistema socioeconómico, base de libertação da humanidade — um sistema socialista. [...]

«Essa teoria revolucionária tem um nome, nome que só por si assusta as classes exploradoras e aqueles que as servem. É o marxismo-leninismo, não concebido como cristalizado e dogmatizado, mas dialéctico, criativo, cujos princípios se actualizam e enriquecem acompanhando por um lado as conquistas da ciência e respondendo por outro à vida, às transformações, às mudanças da sociedade e experiências de luta.» E tem esse nome porque Lénine foi o «genial teórico continuador de Marx e de Engels, [o] criador do Partido proletário de novo tipo, [o] dirigente da primeira revolução socialista vitoriosa, [o] fundador do primeiro Estado de operários e camponeses, [o] criador e guia da Internacional Comunista».

O marxismo-leninismo adquire uma poderosa «força material quando ganha as amplas massas». Por isso, e apesar de «A formação do Partido Comunista Português [ter resultado] dum processo objectivo e do amadurecimento da consciência política dos trabalhadores [portugueses,] Essa tomada de consciência teria sido entretanto incomparavelmente mais tardia se não fora a influência da Revolução de Outubro, das experiências dos bolcheviques russos, da difusão das ideias de Lénine».

Sendo verdade que «a expansão em Portugal das ideias do socialismo e do comunismo são inseparáveis das experiências da Revolução de Outubro e de todas as suas repercussões», isso não significa que venha a soar cá «o tiro [de um] nosso Aurora» ou se verifique «o assalto [a um] nosso Palácio de Inverno». «Para a definição da sociedade portuguesa por que lutamos, estudamos e instruímo-nos com as experiências dos países socialistas (as experiências positivas e também com as lições das experiências negativas) e definimos os objectivos da nossa luta tendo em conta as condições concretas em que lutamos e da evolução económica, social e política de Portugal.»

Depois da Revolução Portuguesa, foi possível estreitar as relações com os países socialistas e em particular com a URSS, e portanto também aprender mais com essas experiências. Isto não quer dizer que as relações de solidariedade entre os povos dos dois países só tenha começado aí. Durante o fascismo, o povo soviético deu «provas constantes de solidariedade; […] levantou na arena internacional a sua poderosa voz de protesto contra o regime que nos oprimia; […] dia a dia deu repetidas e firmes provas de apoio e ajuda à luta do povo português; recebeu militantes operários e democratas; e […] numa extrema prova de sensibilidade acolheu e educou filhos de presos e perseguidos». Depois da Revolução, tornou-se possível «desenvolver as relações com os países socialistas […] com grande vantagem para o nosso povo, […] no plano económico, no plano comercial, no plano cultural».

Essas relações, que permitiam ao povo português conhecer como não podia conhecer antes o socialismo real, e a solidariedade desde a primeira hora entre o PCUS e o PCP, fizeram com que se estabelecessem paralelos entre o socialismo real e o projecto de socialismo do PCP para Portugal. Álvaro Cunhal afirma nos anos a seguir à revolução que «as revoluções não se copiam, porque não há modelos de revoluções, porque, em cada país, as soluções para os problemas e os processos de transformação social devem ser encontrados na base das situações concretas existentes e das suas particularidades, originalidades e especificidades», e portanto, «No que respeita a Portugal, a orientação do nosso Partido baseia-se na análise da realidade nacional, designadamente do grau e características do desenvolvimento do capitalismo, das estruturas socioeconómicas, da composição de classe da sociedade, da densa rede das contradições e conflitos de classe, da organização do Estado e dos seus diversos elementos e dos factores subjectivos, como são o nível, a influência e o grau de organização social e política das várias classes».

Se esta avaliação era válida nesses anos, tornou-se ainda mais premente depois do lançamento da perestroika na União Soviética em meados dos anos 80 o PCP que antes era a mão de Moscovo passou a não acompanhar os tempos.

Álvaro Cunhal afirmou que «Desde início tornámos claro que o nosso Partido era solidário para com uma política de reestruturação, renovação, reforço do socialismo». Mas a perestroika, que apregoava mais democracia e mais socialismo, «Renegou a revolução. Renegou tudo quanto o povo havia realizado, alcançado e vitoriado. Renegou a luta heróica dos que deram a vida. Renegou democracia e renegou socialismo». E com ela «O desmoronamento da URSS e a evolução para o capitalismo», que deixou o «campo mais livre ao imperialismo para se lançar à ofensiva tentando liquidar à força todas as forças que se lhe oponham, e impor de novo o seu domínio mundial».

Se «Não há dúvidas de que a principal contradição no mundo (no plano da contradição geral entre a burguesia e o proletariado) é a que opõe [...] o campo socialista e […] o imperialismo», é natural que este último tenha usado todo o tipo de campanhas para tentar disseminar o anticomunismo. Em Portugal e no resto do mundo, antes e depois da revolução, não faltaram as mentiras, as calúnias e as intrigas, que se verificaram inclusivamente no seio do movimento comunista internacional. E porquê? «As razões fundamentais», explica Álvaro Cunhal, «são a importância na consciência dos explorados e oprimidos, do exemplo da construção vitoriosa do socialismo na URSS, com as suas grandes realizações no domínio económico, social, cultural, científico, técnico e em todos os aspectos fundamentais do desenvolvimento da sociedade, a profunda e em muitos aspectos determinante influência da URSS (e dos países socialistas em geral) na evolução progressista da situação mundial, a sua solidariedade para com os trabalhadores e os povos de todos os países, a sua força real que faz frente à política de agressão do imperialismo» e que representava «o maior bastião da paz mundial».

Um dos ingredientes dessa campanha era a acusação de não se defenderem as liberdades em Portugal. Mas para o PCP, «o projecto de uma sociedade socialista [tem] sempre a democracia como elemento essencial». «A sociedade socialista que queremos para Portugal é uma sociedade em que seja posto fim à exploração do homem pelo homem, em que seja posto fim às grandes desigualdades e injustiças sociais, em que seja erradicada a miséria, a fome, a marginalização e exclusão social de milhões de portugueses, em que o desenvolvimento económico seja assegurado com a dinamização do aparelho produtivo para bem do povo e do país e em que as liberdades e direitos dos cidadãos sejam assegurados no quadro de uma democracia integrante do projecto comunista “mil vezes mais democrática que a mais democrática das democracias burguesas”.» E por isso, «A nossa luta actual por uma política democrática não é apenas de conjuntura. […] É parte constitutiva da nossa luta pelo socialismo.»

Com o que fica por dizer se faz esta antologia de textos de Álvaro Cunhal. Sendo objectivo deste seminário «pôr em evidência a importância e o significado histórico universal da Revolução de Outubro», estamos certos que a leitura de Álvaro Cunhal, e em particular desta antologia, será do interesse de todos os participantes. Fica então feito o convite à leitura e ao estudo.