centenario | Debate «Livre criação e fruição da cultura»

Intervenção de Jorge Pires

Membro da Comissão Política do Comité Central do PCP

Objectivos do Desenvolvimento e importância da cultura no quadro de uma democracia avançada e do socialismo em Portugal

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Intervenção de Jorge Pires

Este é o último, dos oito debates centrais que realizamos no quadro das comemorações do centenário, três dos quais dedicados à educação, à ciência e desenvolvimento tecnológico e à cultura. -, três temas que nem sempre tiveram, na minha opinião, o tratamento e o destaque de acordo com a importância decisiva que tiveram nos resultados obtidos no desenvolvimento da URSS com a Revolução de Outubro.

Passados 100 anos sobre este histórico acontecimento, devemos começar por nos interrogar, como é que um país, com um nível capitalista relativamente incipiente e alguns resquícios feudais, que vivia uma situação de profunda miséria e um elevado nível de analfabetismo, se transformou, em poucas décadas, numa potência económica, criando desta forma as bases materiais para um desenvolvimento social invejável.

A resposta podemos encontrar em grande medida numa estratégia que apostou forte na educação, na ciência e no desenvolvimento científico e na democratização da cultura.

Estratégia para a definição da qual foi decisiva a intervenção de Lénine, nomeadamente no VIII Congresso do Partido Comunista realizado em Março de 1919.

Para Lénine, na esteira da construção económica das bases materiais de sustentação da sociedade socialista, processava-se o desenvolvimento cultural dos povos que habitavam o imenso território da URSS. Os primeiros resultados apareceram já depois de terminada a Guerra Civil. No domínio da instrução pública, por exemplo, a população alfabetizada cresceu 32% em 1920 para 40% nos fins de 1926.

Êxitos que contribuíram para que um pouco por todo o mundo se dinamizassem a criação de partidos comunistas e se desenvolvessem as lutas da classe operária contra a exploração e por melhores condições de vida.

A consciência de que o acesso ao conhecimento enquanto visão estruturante, integrada e globalizante do mundo, é uma arma contra a exploração e contra as injustiças sociais, levou a um crescimento exponencial da luta dos trabalhadores e foram alcançados um pouco por todo o lado, particularmente na Europa, novos direitos laborais e melhores rendimentos do trabalho, mas também a significativos avanços nos planos da educação, da cultura e do conhecimento científico.

Com o golpe fascista em Portugal, no campo da Educação e da Cultura, o Estado seguiu uma política visando subordinar o esclarecimento das classes trabalhadores e assegurar a formação profissional de mão-de-obra política e culturalmente marginalizada.

Durante o fascismo, a orientação do ensino e da cultura esteve inteiramente subordinado aos interesses retrógrados da classe dominante e os progressos da Ciência e os conhecimentos científicos, não eram aplicados à produção senão na estrita medida em que interessavam aos monopólios.

Na luta contra o fascismo, surgiu, entre outros intelectuais, Bento Jesus Caraça, com um percurso excepcional nos planos: pedagógico, cultural e cívico, que desenvolveu toda uma intensa actividade a partir da Universidade Popular Portuguesa, que ele ajudou a fundar, com um importante papel na cultura portuguesa na primeira metade do século XX.

O espírito da UP ficou bem patente numa conferência proferida por BJC quando levantou a questão central que inspirara a criação da UPP: encarando agora as sociedades organizadas tal como actualmente se encontram, pergunta-se – quem deve ser o detentor da cultura? A massa geral da humanidade, ou uma parte dela? A sua resposta à pergunta que ele próprio fizera, não podia ser mais clara «à pergunta feita deve responder-se condenando a detenção da cultura como monopólio de uma elite … Deve portanto promover-se a cultura de todos e isso é possível porque ela é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante».

Em Portugal só o processo revolucionário desencadeado pelo 25 de Abril de 1974 trouxe uma profunda democratização da sociedade portuguesa e trouxe também enormes transformações políticas, económicas, sociais e culturais. Foram criadas as condições para se avançar com políticas de desenvolvimento integrado com apostas muito claras no ensino, na ciência e na democratização da cultura.

Contudo, o processo contra-revolucionário e os 40 anos de política de direita que se seguiram, inverteram o sentido das medidas tomadas durante os primeiros anos do processo revolucionário.

O atraso cultural a que o fascismo condenou o nosso País e o facto de serem mais demoradas as transformações da esfera cultural, exigiam que tivesse sido dada prioridade ao investimento e ao desenvolvimento da cultura, algo que a política de direita sempre se negou fazer.

A corrente dominante no nosso País até hoje, desresponsabilizadora do Estado e guiada por critérios mercantilistas, como aqui já hoje foi amplamente referido, vai em sentido inverso, reflectindo as tendências impostas pelo capitalismo na sua fase actual.

O dito mercado cultural, numa sociedade de classes e de propriedade privada dos bens de produção, é não apenas mais um sector da economia capitalista como também um meio de reprodução quase automática, mas subtilmente manobrada, dos valores da classe dominante.

Marx desenvolveu a tese de que o capital para se perpetuar no tempo precisa de reproduzir as suas componentes económica – força de trabalho e meios de produção – , e de reproduzir as suas componentes ideológicas, cujos aparelhos de reprodução se encontram na religião, na comunicação social, na escola e na família.

Os capitalistas desejam trabalhadores hábeis mas obedientes e por isso temem o paradigma da “cultura integral”, que os prepara para uma intervenção na sociedade nos planos, político, social e cultural. Que os habilita a desenvolver as suas tarefas profissionais, mas também a questionar e a reivindicar.

Camaradas

A política de direita desenvolvida ao longo dos últimos 40 anos, da responsabilidade de PS, PSD e CDS-PP, é responsável por um processo de  desenvolvimento assente apenas no critério do crescimento quantitativo e material.

Expressão clara desta opção política e ideológica, está inequivocamente desenvolvida no chamado “Relatório Mateus”, encomendado pelo Ministério da Cultura em 2010, quando Sócrates era Primeiro-Ministro que apontava de forma muito clara para um desenvolvimento das políticas culturais sobretudo na base daquilo que os documentos da UE designam por descentralização e desestatização, o que significa, no essencial, colocar os recursos públicos ao serviço dos interesses privados também nesta área.

Segundo o relatório Mateus, as actividades culturais deveriam integrar-se em estratégias de desenvolvimento regional, local e urbano, no marketing territorial. Na competitividade nacional/regional/ local e de “afirmação competitiva”. Da competitividade do tecido empresarial do sector conjugada com um “sistema de incentivos específico “ a que não faltam, nomeadamente, as parcerias público- privado. O Relatório Mateus constitui a formulação mais elaborada até ao momento, de uma política de integração das esferas da Cultura num mercado dominado pelo grande capital transnacional.

O País tem vivido, na área da cultura, como noutras áreas, um período marcado por uma acentuada elitização, privatização e mercantilização, em que a cultura é concebida como apenas mais uma área da actividade económica, centrada em torno das chamadas indústrias culturais, opção que sucessivos Orçamentos do Estado acentuaram, ao substituir a presença livre e independente criação, pela resposta da monocultura dominante, numa sistemática fragilização do tecido cultural, um tecido cada vez mais vulnerável e precário, com novas limitações no acesso à criação e à fruição culturais.

Os resultados falam por si. Portugal mantém-se um elevado grau de iliteracia, o analfabetismo mantém-se num dos mais altos índices europeus, os públicos são, em muitos casos reduzidos, a cultura que apela à inteligência, à sensibilidade; à reflexão crítica à criatividade, é preterida pelo consumismo.

Na proposta do PCP para o desenvolvimento do País, há duas, entre outras preocupações, às quais procuramos responder de forma inequívoca: uma primeira é a necessidade de ter em conta a dimensão cultural do processo de desenvolvimento e por outro, a necessidade de  estimular as atitudes criadoras e a vida cultural no seu conjunto.

A importância da cultura e da inovação científica e técnica representam um dos principais desafios do mundo contemporâneo, pelo que a consideração da dimensão cultural e da inovação científica e técnica requer, por um lado a elaboração de estratégias harmonizadas em matéria de desenvolvimento científico, técnico social e cultural, e por outro, que se identifiquem novas formas de acção educativa e cultural que tenham em conta os avanços da ciência sem ignorar as tradições culturais.  

Para o PCP, o desenvolvimento, cujo objectivo último deve estar centrado no Homem, tem uma dimensão cultural essencial, deve preservar os traços da sua identidade cultural e impedir a erosão de alguns dos seus valores, frente às ameaças de standerização dos gostos e modos de vida a que são expostas, ao impacto de modelos importados.

O acesso aos bens e serviços culturais, a participação da vida cultural e o desenvolvimento de actividades culturais endógenas, particularmente mediante a promoção da criatividade e da criação,  representam hoje em dia uma exigência fundamental.

Exigência que está reflectida no Programa do PCP, a “democracia avançada, os valores de Abril no futuro de Portugal”, que o Partido propõem ao povo português, e que surge na continuidade histórica do programa da revolução democrática e nacional definido e aprovado em 1965 e dos ideais e conquistas e realizações de valor igualmente histórico da revolução de Abril, democracia avançada que propõe projecta, consolida e desenvolve os valores de Abril no futuro de Portugal.

No ideal e projecto do PCP, a democracia tem quatro vertentes inseparáveis – política, económica, social e cultural.

Democracia cultural, baseada no efectivo acesso das massas populares à criação e fruição da cultura e na liberdade e apoio à produção cultural, um política cultural que assegure o acesso generalizado à livre criação e fruição culturais.

O direito à educação e ao ensino, à cultura e ao desporto é o direito de todos e cada um ao conhecimento e à criatividade, ao pleno e harmonioso desenvolvimento das suas potencialidades, capacidades e vocações, a uma adequada formação cívica e será assegurada por uma política, que assuma a educação, a ciência e a cultura como vectores estratégicos para o desenvolvimento integrado do nosso País, que atenda à multiplicidade e diversidade dos processos educativos e formativos contemporâneos e as dimensões a que estes necessitam de dar resposta, desde a competência profissional e a qualificação, à cultura humanista e científico-técnica, à inovação e à criação, aos valores cívicos e humanos e que assegure um ensino da mais alta qualidade para todos os portugueses e que seja um factor de elevação do nível cultural da população, da formação integral do ser humano e de afirmação de uma cidadania plena e criadora numa sociedade democrática.

Tal como está inscrito no Programa do PCP, a democracia cultural que o Partido defende implica:

- A generalização da fruição dos bens culturais e das actividades culturais, com a eliminação das descriminações económicas, sociais, de sexo e regionais no acesso aos conhecimentos e à actividade cultural;

- a formação de uma consciência social progressista, que promova os valores humanistas da liberdade, da igualdade, da tolerância, da solidariedade, da democracia e da paz;

- o reconhecimento e a valorização da função social dos trabalhadores da área da cultura e das suas estruturas e a melhoria constante da sua formação e condições de trabalho, e o apoio efectivo aos jovens artistas;

- o apoio ao livre desenvolvimento das formas populares de criação e fruição, de associativismo e vida cultural, reconhecendo-se e valorizando-se o seu papel dinâmico na formação da identidade nacional;

- a criação das condições materiais e espirituais indispensáveis ao desenvolvimento da criação, produção, difusão e fruição culturais, com a rejeição da sua subordinação a critérios mercantilistas e no respeito pela controvérsia científica e pela pluralidade das opções estéticas;

- uma política que potencie a função cultural e social do desenvolvimento científico e tecnológico;

- a expansão da educação e do ensino artísticos e da animação sociocultural;

- o intercâmbio com outros povos da Europa e do mundo , a abertura aos grandes valores da cultura da humanidade e a sua apropriação criadora, o combate à colonização cultural e a promoção internacional da cultura e da língua portuguesa, em estreita cooperação com os outros países que a usam.

A democracia cultural pressupõe responsabilidades fundamentais do Estado democrático, mas só pode ser construída na combinação da acção do Estado com a participação e a criatividade individuais  e colectivas.

A democracia cultural entendida como um factor da democracia política cujas potencialidades só se podem desenvolver com o alargamento e a elevação da formação e da vida cultural das populações.

É um factor da democracia económica e do desenvolvimento, porque representa a qualificação principal força produtiva: o trabalho humano. É um factor da democracia social porque é um vector de intervenção crescente na vida da sociedade, por parte dos  trabalhadores, das classes e grupos sociais mais interessados na democracia.

Mas é igualmente um factor de soberania nacional, porque coopera na formação  da identidade nacional, num processo aberto e activo e de interacção com a cultura mundial.

Camaradas

Nenhum outro ideal, mais do que o ideal dos comunistas, corresponde à aspiração mais profunda dos intelectuais no domínio das suas actividades específicas: a aspiração à completa realização das suas capacidades e potencialidades – científicas, artísticas, pedagógicas, técnicas – e à fruição social dos bens em que o seu trabalho se concretiza.

Num prazo histórico mais ou menos prolongado, por vias diversificadas e num processo comportando necessariamente redefinições e enriquecimentos de projecto, através da luta de emancipação social e nacional dos trabalhadores e dos povos, é a substituição do capitalismo pelo socialismo que, no século XXI, continua inscrita como uma possibilidade real e como a mais sólida perspectiva de evolução da humanidade.

È a partir da realidade portuguesa e da experiência revolucionária portuguesa nos seus múltiplos aspectos e assimilando criticamente a experiência revolucionária mundial tanto nos seus acertos e êxitos como nos seus erros e derrotas, que o PCP aponta ao povo português, como seu objectivo, a futura sociedade socialista

Para a concretização dos objectivos fundamentais da revolução socialista, o Programa do Partido aponta no plano cultural, a transformação da cultura em património, instrumento e actividade de todo o povo, o progresso da ciência e da técnica, a expansão da criação artística, o estímulo à criatividade, o pleno acesso ao ensino e um elevado nível de democracia cultural resultante da conjugação permanente da política das instituições do Estado socialista com a iniciativa, a participação e a actividade criadora individual e colectiva.  

Viva a Revolução de Outubro

Viva o PCP