centenario | Debate «Livre criação e fruição da cultura»

Intervenção de Manuel Rodrigues

membro da Comissão Política do Comité Central do PCP e director do jornal «Avante!»

As grandes conquistas e realizações nos planos da criação e fruição da cultura conseguidos pela Revolução de Outubro e na construção do socialismo na URSS

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Intervenção de Manuel Rodrigues

A URSS herdou da velha Rússia de capitalistas e grandes agrários um grande atraso económico e cultural, situação agravada pelos diferentes níveis de desenvolvimento histórico dos povos oprimidos pelo império russo, a maior parte dos quais em estado pré-capitalista e com grandes diferenças de nível cultural.

Bem sabemos que numa sociedade dividida em classes antagónicas (e, com o seu aparecimento, a consequente separação entre o trabalho físico e o intelectual), como era a sociedade russa até Outubro de 1917, a cultura tem um carácter de classe, está ao serviço dos interesses egoístas das classes exploradoras e a actividade intelectual é um privilégio das classes dominantes, enquanto as classes dominadas, alienadas do processo espiritual, são reduzidas à condição de executores físicos da vontade alheia, ao «idiotismo» profissional.

Em consequência, considerava Engels: «o rápido progresso da civilização foi atribuído exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à capacidade do cérebro».

A ideologia burguesa, dominante na sociedade capitalista, determina o seu conteúdo político-ideológico reaccionário e o seu papel anti-popular, subordina todas as realizações positivas da cultura aos interesses egoístas da classe burguesa e entrava todo e qualquer progresso da sociedade.

Assim apareceu o antagonismo entre trabalho físico e trabalho intelectual, um reflexo do antagonismo de classes na divisão genérica do trabalho, processo que é acompanhado  por uma acirrada luta de classes.                                                                                                                                                                                                                                                          

Era este o retrato cultural da velha, atrasada, aristocrática e semi-feudal sociedade russa pré-revolucionária que alguns dados referentes à instrução pública, ciência e cultura artística ajudarão a caracterizar:

Instrução pública

Dizia Lenine: «tirando a Rússia não existe na Europa nenhum País tão bárbaro em que as massas populares tenham sido espoliadas no tocante ao ensino, ilustração e saber...»

a) Analfabetismo

- geral: 75%;

- nas mulheres – 83,4 (dos 9-49 anos);

- em numerosos povos/nacionalidades raiava os 100%: Quirguízia – 94%, Turqueménia – 99,3% e Kasaquistão – 98%;

- 48 desses povos não tinham sequer escrita própria.

b) acesso à escola

- quatro quintos das crianças não frequentavam a escola e a maior parte das que a frequentavam não estudavam mais do que a instrução primária

- jardins de infância «populares – 25 (em toda a Rússia)

c) ensino superior

- em cada mil habitantes só 61 nas cidades e 3 nos campos possuíam instrução superior  (note-se que a imensa maioria da população da velha Rússia – mais de ¾ - vivia nos campos)

- 1913 – o ensino superior era frequentado por 290 000 alunos  (comparativamente em 1970 eram 24, 3 milhões)

- diversos povos da Rússia não tinham escola superior: Bielorrússia, Lituânia, Moldávia, Azerbeidjão, Uzebequistão, Turqueménia, Tadjiquistão e Kirguízia, etc.

Ciência

Havia 300 instituições científicas e 11 mil e seiscentos cientistas

Cultura artística

- As bibliotecas públicas dispunham de 640 livros em média para 10 000 habitantes

- Eram praticamente inacessíveis às massas:museus, teatros, ópera, cinemas, bibliotecas, ateliês de artes, centros culturais, desporto

A Revolução de Outubro

Iniciada a Revolução de Outubro, com a tomada do poder pelos sovietes, a par de medidas extraordinárias nos planos político, económico, social e nacional iniciou-se a Revolução cultural construindo uma nova cultura num contexto de cerco cultural pelo hostil mundo capitalista associado à velha oligarquia russa e responsável por boicotes, bloqueios, guerra e sabotagem. É num contexto também marcado pela pobreza, o analfabetismo, a miséria e  a guerra que o novo poder soviético põe mãos ao colossal empreendimento de edificação do novo Estado socialista, sob a direcção do Partido Bolchevique e de Lenine e com o abnegado esforço e dedicação do povo soviético.  

A revolução cultural como componente da Revolução de Outubro era assim caracterizada por Lenine: «Antes, todo o espírito humano, todo o génio do homem só criava para dar a uns todos os bens da técnica e da cultura e privar outros do indispensável: da instrução e do progresso. Hoje, todas as maravilhas da técnica, todas as conquistas da cultura tornar-se-ão património de todo o povo e, a partir de agora, a inteligência e o génio humano não mais se converterão em instrumentos de violência, em meios de exploração».

Em termos de finalidade histórica, a Revolução cultural é a transformação da cultura de «instrumento do capitalismo em instrumento do socialismo». É a transformação  da cultura, de património da minoria exploradora em património da maioria trabalhadora, em património de todo o povo.

Partindo do pressuposto que a fonte da cultura é o trabalho - As massas populares tornam-se sujeito consciente e activo de criação cultural, ao mesmo tempo que os cientistas mais qualificados, sábios e técnicos de talento, artistas e escritores gozam de plena liberdade de criação cultural, são apreciados e desfrutam de um prestígio e situação excepcionais.

A Revolução cultural começou pela instrução elementar – aprender a ler e a escrever. Daí o primeiro conjunto de medidas serem dirigidas para a alfabetização, tarefa prioritária, urgente e decisiva tendo em vista acabar com o analfabetismo das massas.

A 26 de Dezembro de 1919, o Conselho dos Comissários do Povo aprova o Decreto sobre «a erradicação do analfabetismo no seio da população da RSFSR assinado por Lenine e delibera que «toda a população da República, entre os 8 e os 50 anos de idade, que não saiba ler nem escrever, deve alfabetizar-se na língua materna ou em russo, conforme queira».

Na revolução cultural, paralelamente à negação da ideologia burguesa, modifica-se acentuadamente o fundamento teórico, conceptual  da cultura. Esta liberta-se do poder das concepções idealistas, do predomínio das superstições religiosas e adquire sólido fundamento na concepção científica do mundo, da natureza e da sociedade (o materialismo dialéctico e histórico).

A Revolução cultural é um processo bivalente: afirma-se pela negação do velho, decadente e caduco e afirmação do novo, progressista. Mas a Revolução Cultural é um processo singular mais longo e complexo do que os outros processos de transformação revolucionária e pressupõe a negação de uma parte da cultura burguesa enquanto outra é integrada no socialismo. Nem a negação completa nem a adopção incondicional.

Lenine exortou o Partido e o povo a que cuidassem de tudo o que de valioso existe na cultura do capitalismo a que dessem merecido valor à herança cultural. Abrange nesta consideração não toda a cultura do passado mas toda aquela que representasse avanço progressista, ideias de vanguarda. Como se estivéssemos a progredir subindo os degraus do desenvolvimento cultural.

A Revolução Cultural:

A Revolução cultural opera-se a dois níveis: produção de valores culturais e consumo desses valores pelas massas. E define como prioridades imediatas: - a luta pela liquidação do analfabetismo em massa e a elaboração da escrita para os povos que a não tinham bem como a ampliação da rede escolar infantil. Assume como primeiros objectivos: a superação das desigualdades culturais e jurídicas entre homens e mulheres; do atraso do campo relativamente à cidade; do atraso cultural de muitos povos; das profundas diferenças sócio-culturais entre trabalhadores manuais e intelectuais.

Para a sua concretização são disponibilizados investimentos numa impressionante progressão à medida que se vão atingindo níveis mais elevados de planificação do desenvolvimento económico, em particular, com a concretização dos planos quinquenais.

Investimento na cultura

Comparando com a Rússia czarista com um investimento irrisório na cultura, temos:

entre 1923-24 a 1927-28 – menos de  1 milhão de rublos /ano;

1940 –   4 milhões / ano;

1950 – 11,7 milhões /ano;

1968 – 21,4 milhões / ano.

A Revolução Cultural rasga amplos horizontes ao florescimento da ciência e das artes, à acumulação acelerada de valores espirituais com a libertação dos cientistas do poder do capital, dotando-os de liberdade de criação e, teórica e ideologicamente, a ciência e as artes desenvolvem-se a partir de uma visão dialéctica e materialista e da ideologia socialista.

Registam-se importantes avanços nos três domínios-base da cultura que assumimos para efeitos comparativos.

1. instrução pública

a) alfabetização

- Em poucas décadas é conseguida a alfabetização total da população (1938 – 90% da população sabia ler e escrever). É o primeiro país no mundo a fazê-lo.

- 40 nacionalidades criaram a sua escrita  própria.

b) escolarização

- dá-se a introdução da escolaridade secundária geral;

- é o primeiro sistema educativo totalmente público e gratuito (nos EUA contraem uma dívida média de 80 000 dólares durante a licenciatura);

- o ensino é ministrado em 57 idiomas;

- é o primeiro país a criar a universidade nocturna;

- em 1975, havia 800 estabelecimentos do ensino superior;

- 1987: 140 000 jardins de infância frequentados por 16 milhões de crianças

- em 1988: com instrução superior – 20 milhões, com instrução superior incompleta – 3,5 milhões, com instrução secundária especializada – 30,9 milhões, com instrução secundária geral – 65,9 milhões, com instrução secundária incompleta – 43,7 milhões;

- 1987: total de estudantes – 109,7 milhões;

- 1 em cada 3 trabalhadores eram qualificados - a URSS possuía o melhor sistema do mundo em formação profissional geral e especializada.

2. ciência

- A União Soviética possuía, na década de 80 do século XX, 5000 institutos científicos especializados e o número de cientistas em 1989 era de mais de 5 milhões / um quarto do total mundial.

- territórios quase totalmente analfabetos na era czarista passaram a ter estabelecimentos de ensino superior. Dois exemplos:  Tadjiquestão - 11 institutos, Turqueménia – 9.

b) grandes avanços e descobertas:

A União Soviética desenvolveu como nenhum outro país ciências como: Matemática, Física Nuclear, Física do Plasma, Bioquímica, Biologia, muitos ramos da Química, Geologia, Oceanografia, Astronomia, etc.

- e foi responsável pelos maiores inventos – 20 a 25 % do fundo mundial de novas soluções e projectos técnicos registados por ano (década de 80 do século XX).

Cosmos

Lançou:

-1.º satélite artificial – Sputnik – 1957;

-1.º homem no espaço – Iuri Gagarine – 1961 Vostok 1;

-1.ª mulher cosmonauta – Valentina Terechkova – 1963 – Vostok 6;

-1.º astronauta a passear no espaço – Alexei Leonov;

- construiu estações orbitrais (1.ª 1971 – Salyut 1);

- primeira estação espacial permanente – MIR – de 1986 a 2001.

Medicina:

-primeiro transplante da córnea com sucesso;

-primeira operação cardíaca com anestesia local;

1980: 997 médicos por 10 000 habitantes (um terço do mundo).

Note-se que na Rússia anterior à Revolução de Outubro a primeira causa de morte da mulher é o parto.

outros domínios:

- criou os primeiros robots;

- 1.º navio quebra-gelo movido a energia nuclear;

- inventou a fusão nuclear, o LED, primeiro microfone laser, primeira antena de rádio;

- primeiro computador pessoal;

- primeiro telemóvel;

- maior instalação termonuclear experimental do mundo;

- esteve à cabeça na construção de: foguetões, técnica nuclear, plataformas orbitrais, síntese termonuclear dirigida, maiores centrais hidroeléctricas, sistemas de irrigação.

3. cultura artística

Na década de 70 do século XX a União Soviética possuía:

-134 000 clubes e casas de cultura;

-1444 museus;

-39 grandes estúdios de cinema;

-360 000 bibliotecas com um fundo de 3 biliões de unidades de livros e jornais;

-553 teatros dramáticos e musicais (em 42 línguas);

-7 000 escolas de música e de arte;

-trabalhavam 14 milhões de pessoas trabalhadores clubes de arte amadora, onde estudavam 10 milhões de estudantes;

-era o maior editor do mundo (14 000 exemplares de livros por minuto);

-possuía 200 editoras centrais e locais (89 línguas);

-era o país do mundo onde mais concertos musicais se realizavam, onde mais teatros, salas de cinema e edifícios culturais existiam. Onde as massas de trabalhadores acediam à ópera com facilidade, onde o desporto era gratuito e para todos.

a frequência anual

- nos teatros, salas de concertos, circos (dez  vezes mais espectáculos do que no resto do mundo) – era de 300 milhões;

- nos museus – 100 milhões;

-nos cinemas – 4,6 milhões;

- os leitores permanentes das bibliotecas estatais, sindicais, rurais eram 180 milhões.

URSS tornou-se a:

- 1.ª potência do livro – liam-se mais livros do que em todos os outros países em conjunto;

- 1.º lugar no número de bibliotecas;

- a quase totalidade da população tocava algum instrumento musical.

Em 1973 registava-se a existência de:

-6500 revistas e 7944 jornais abrangendo um total de 30 milhões de exemplares.

Liam-se mais periódicos do que em todos os outros países no seu conjunto.

em 1970

- 1 livro, 1 médico, 1 cientista, 1 estudante em cada 4 no mundo;

- mais de metade da população rural no ensino superior e médio.

Arte

- o exercício de uma actividade artística era considerada profissão.

- a sociedade deveria garantir as condições materiais e sociais necessárias à criação artística e científica.

- deu-se o desenvolvimento criativo de novas formas de expressão artística de vanguarda:

no teatro (com Meyerhold, Mayakovski, entre outros)

na fotografia e no cinema (com Sergei Eiseinstein, Vertov e outros).

Lenine considerava o cinema a mais importante de todas as artes, o mais importante instrumento das luzes.

Como referiu Ruben de Carvalho no seminário sobre a Revolução de Outubro, no passado dia 17 de Junho, «A Revolução de Outubro produziu não apenas um vastíssimo espólio de artes então ainda nos seus primeiros passos (fotografia e cinema) com um inestimável valor documental, mas gerou esteticamente criações pioneiras nas duas expressões. Para além da protagonização do trabalho e do corpo do trabalhador como elementos coerentes com a nova situação política, é indispensável sublinhar a criatividade de fotógrafos e cineastas num período em que a fotografia, o cinema e todos os elementos de apoio (iluminação, trabalho de laboratório, lentes, etc) conhecem desenvolvimentos limitados, o que dá uma identidade muito característica às técnicas de enquadramento e localização da imagem, a que há a acrescentar o experimentalismo na combinação entre a fotografia e outras expressões plásticas».

Mas a Revolução de Outubro teve impacto em outras áreas da actividade artística como, por exemplo: na literatura, escultura, arquitectura, música, pintura e artes gráficas (com particular incidência no cartaz), na decoração urbana, e na propaganda à própria Revolução e ao processo de edificação do socialismo.

Surge pela primeira vez num governo a figura de comissário para a instrução e para as artes, do comissariado para a Instrução e as Belas-Artes (Anatoli Lunatcharski). É criado o Comissariado de Instrução Pública, o Narkompros (Comissariado da Educação) e um colégio que se ocupava da protecção dos monumentos históricos e artísticos e depois Comissões Locais de protecção dos monumentos artísticos.

Desenvolvem-se actividades culturais acessíveis às massas: os teatro de rua, os comboios, os barcos, as camionetas, as carroças pintadas, os comboios agit-prop pintados de cores muito vivas com representações da evolução levando dentro salas de cinema, bibliotecas, exposições de pintura, salas para aulas entre outras, numa concepção da cultura em que o trabalho da revolução se liga intimamente com a festa.

Estas foram grandes linhas de transformação impulsionadas pela Revolução de Outubro que criaram as bases de uma sociedade nova e o início da construção de um homem novo só concretizáveis no quadro de construção do socialismo tendo como horizonte o comunismo.