centenario | Sessão/Debate «Agricultura e desenvolvimento rural»

Intervenção de Maria da Piedade Morgadinho

O Decreto da Terra - Fonte da política socialista da Terra

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Intervenção de Maria da Piedade Morgadinho

A insurreição triunfara. [Sob a direcção dos bolcheviques a classe operária da Rússia, em aliança com os camponeses pobres e apoiada pelos soldados e marinheiros, derrubou o poder da burguesia.] Ouviam-se ainda, aqui e ali, alguns disparos no Palácio de Inverno e na noite do primeiro dia da Revolução Socialista vitoriosa reunia o II Congresso dos Sovietes de toda a Rússia. Eram delegados de mais de 400 sovietes regionais, provinciais, distritais, locais de toda a parte do país.

[Depois de aprovar o Decreto dobre a organização do poder político, estabelecendo como seus órgãos supremos – o Congresso dos Sovietes de toda a Rússia e o Conselho dos Comissários do Povo (governo de operários e camponeses) presidido por Lénine, pela primeira vez na história surgia um Estado que revelava a sua natureza de classe aprovando um programa que correspondia aos anseios mais profundos de todos os trabalhadores: Paz, Terra e o poder dos Sovietes.

Depois de aprovar um Apelo dirigido aos operários, soldados e camponeses para que apoiassem o novo poder revolucionário.]

Revelando a natureza de classe do poder revolucionário o Congresso  aprovou os seus primeiros actos legislativos: o Decreto sobre a Paz e o Decreto sobre a Terra.

Estava, assim, aberto o caminho para a edificação da primeira sociedade socialista na história da humanidade.

O Decreto sobre a Terra foi redigido por Lénine nas escassas horas decorridas entre o final da noite de 7 de Novembro e as primeiras horas do dia 8. Mas foi o culminar de um intenso trabalho desenvolvido ao longo de anos sobre a Questão Agrária na Rússia. O primeiro Programa Agrário, elaborado por Lénine, foi aprovado no II Congresso do POSDR, em 1903. Remonta a Março de 1903 o seu conhecido artigo sobre a luta de classes no campo intitulado «Aos camponeses pobres», onde analisa a primeira revolta dos camponeses russos em 1902, sangrentamente esmagada, e aponta as causas da sua derrota: falta de consciência das massas camponesas, a falta de organização, de preparação e a não existência da aliança entre operários e camponeses. O artigo vai no sentido de consciencializar os camponeses para a necessidade de se organizarem e lutarem contra a exploração, pelas suas reivindicações e aliarem-se aos operários na mesma luta pela libertação final e iniciarem a luta pelo socialismo.

Lénine apoiou-se nas obras e na experiência dos criadores do marxismo – Marx e Engels. [Apoiou-se nas obras «As lutas de classes em França», «O dezoito Brumário de Louis Bonaparte» e nas Teses apresentadas na I. Internacional sobre a nacionalização da terra, de Marx e na obra «A guerra camponesa na Alemanha», de Engels.]

A ideia genial de Marx de que a base social da revolução socialista não podia ser constituída somente pela classe operária, e que a aliança da classe operária com o campesinato era decisiva para o destino da revolução, foi o ponto de partida de Lénine para o estudo e resolução da Questão Agrária na Rússia.

A história viria a confirmar a justeza da teoria de Marx, Engels e Lénine: sem o campesinato não é possível o triunfo do socialismo e sem o socialismo o campesinato jamais se libertará da exploração.

Marx, Engels e mais tarde Lénine, desenvolveram o estudo da Questão Agrária em estreita ligação com a questão do poder político, concluindo que sem a solução do problema camponês não era possível instaurar, consolidar e defender um novo poder político revolucionário – a ditadura do proletariado.

O Decreto sobre a Terra foi ao encontro dos sonhos seculares aos camponeses russos, correspondeu aos interesses mais profundos de milhões de camponeses.

Esta lei revolucionária do poder dos Sovietes estabeleceu a confiscação imediata, sem qualquer indemnização, de todas as terras dos latifundiários, dos mosteiros, da Igreja e do Czar e a sua entrega aos camponeses, abolindo o direito à propriedade privada.

O Decreto proibia a compra e venda da terra, a sua hipoteca e o emprego de trabalho assalariado; estabelecia o usufruto igualitário da terra, quer dizer que a terra seria distribuída segundo a norma de trabalho ou de consumo, tendo em conta as condições locais.

Segundo a norma de trabalho, significava que era distribuída aos camponeses tanta terra quanto a sua família conseguisse cultivar independentemente. Segundo a norma de consumo significava que a terra era distribuída a cada família segundo o número de membros do agregado familiar.

Para avaliarmos o que significou o Decreto sobre a Terra para os camponeses e para o futuro desenvolvimento da agricultura socialista basta ter em conta o seguinte:

- na velha Rússia czarista – 10 milhões de famílias camponesas dispunham de 73 milhões de hectares de terras e 28 mil latifundiários possuíam 62 milhões de hectares.

- os camponeses pobres tinham, em média, 7 hectares

- os médios camponeses tinham, em média, 15 hectares

- os kulaks (burguesia rural) tinham, em média, 47 hectares

- os latifundiários tinham, em média, 2 333 hectares

- o czar tinha 7 milhões de hectares

Pelo Decreto sobre a Terra, além de receberem a terra, os camponeses ficaram isentos de pagar rendas aos latifundiários, do reembolso de compra de terras, de dívidas ao banco camponês, e foram-lhes entregues gratuitamente instrumentos de trabalho.

A aplicação das novas leis sobre a terra encontrou pela frente a mais feroz resistência da aristocracia, da grande burguesia capitalista, dos latifundiários, dos kulaks (burguesia rural) através da sabotagem económica (sonegando cereais, destruindo e incendiando culturas, casas, instalações agrícolas, instrumentos de trabalho, matando o gado) e perseguindo, espancando e assassinando camponeses e operários, principalmente comunistas.

A situação política, económica e social na Rússia agravou-se cada vez mais e a luta de classes agudizou-se de dia para dia, particularmente nos campos.

À situação calamitosa, à profunda crise em que estava mergulhado o país, à ruína causada pela Primeira Guerra Mundial, juntou-se a contra-revolução interna e externa, a intervenção imperialista estrangeira que mergulharam o país numa sangrenta guerra civil, que se prolongou até 1921. E saída vitoriosa dessa guerra, vencidos os seus inimigos, a jovem República Soviética teve ainda que enfrentar o bloqueio económico decretado pelos países capitalistas. Viu-se confrontada com os maiores desafios numa luta de vida ou de morte para a Revolução Socialista. Só o heroísmo do seu povo, da classe operária e do seu Partido, apoiados pelas massas do campesinato pobre, tornaram possível à Rússia sair vitoriosa dessa guerra.

Ultrapassados esses obstáculos, consolidado o poder dos Sovietes, afirmado o prestígio nacional e internacional da Rússia Soviética, novas dificuldades se levantaram para a concretização do objectivo fundamental da Revolução de Outubro – a construção do Socialismo, a partir de uma economia atrasada, desorganizada, debilitada, de um país em ruínas e cercado de inimigos. O ano de 1924 foi terrível, foi «o ano da fome».

Relativamente à indústria, o XIV Congresso do Partido Bolchevique, em 1925, aprovou importantíssimas decisões para a rápida industrialização do país, cirando uma sólida indústria pesada, condição fundamental para o desenvolvimento de toda a economia.

No sector agrícola a situação não podia ser pior. Os camponeses desejaram a terra, e a Revolução deu-lhes a terra. Mas estava à vista que as pequenas explorações, individuais, não conseguiam corresponder às necessidades urgentes do país. Não podiam utilizar tractores e outras máquinas agrícolas complexas, aproveitar as aquisições técnicas modernas para aumentar a produção agrícolas, satisfazer as necessidades do país e elevar o nível de vida das massas camponesas.

Anos antes, Lénine advertia: «... se nos limitarmos como outrora às pequenas explorações, mesmo como cidadãos livres, numa terra livre não estaremos menos em perigo de falhar redondamente...».

E mais tarde, no II Congresso dos Sovietes, interrogando-se sobre como explicar aos camponeses que a divisão da terra não os libertava totalmente da exploração e da ruína, Lénine dizia:

«... como governo democrático não podemos deixar de lado a decisão das próprias massas populares...», «... os camponeses verão onde está a verdade. A vida lhes mostrará quem tem razão...».

Em Dezembro de 1927, no seu XV Congresso, o Partido Bolchevique, constatando os êxitos alcançados na industrialização, na completa restauração da indústria, traçou medidas para a realização da tarefa, no seu entender a mais difícil depois da tomada do poder – a colectivização, a passagem das pequenas explorações agrícolas individuais às cooperativas, explorações agrícolas colectivas, de maior dimensão, processo que se iniciou em 1928.

O plano cooperativo de Lénine indicou ao campesinato o caminho da união livremente aceite em cooperativas de produção.

O Estado Soviético aprovou uma série de medidas de apoio aos camponeses: concessão de créditos, máquinas agrícolas, adubos, sementes, facilidades de pagamento do imposto agrícola; criação das Estações de Tractores e Máquinas Agrícolas que mediante contratos prestavam apoio às cooperativas e que tiveram um papel fundamental na colectivização e nos êxitos alcançados.

O Estado criou também um sistema de cursos intensivos para a formação de organizadores e dirigentes das cooperativas (os Kholkozes).

Por iniciativa do Partido os grandes centros industriais assumiram o apoio aos camponeses enviando para os campos 25 mil operários de vanguarda que levaram apoio técnico e apoio político para pôr fim à acção criminosa dos kulaks e outras forças contra-revolucionárias que procuravam impedir a constituição das cooperativas.

O estado constituiu também grandes empresas agrícolas estatais – os Sovkhozes.

Este processo não foi fácil nem isento de erros. Tratavas-e de uma experiência pioneira, sem exemplos anteriores, realizada num contexto histórico nacional e internacional extremamente complexo.

Mas, em 1937, fim do 2.º Plano Quinquenal, o regime Kholkoziano tinha triunfado:

- 93% das explorações agrícolas com 99% de toda a superfície arável e englobando 18,5 milhões de camponeses, estavam constituídos em cooperativas.

Nesse ano de 1937 a agricultura soviética dispunha de 5 858 Estações de Tractores e Máquinas Agrícolas com 456 mil tractores, 120 900 ceifeiras-debulhadoras, 146 mil camiões. A URSS tinha-se transformado num país com uma agricultura altamente desenvolvida. Elevara-se extraordinariamente o nível de vida das massas camponesas.

Não cabe aqui, nem é esse o objectivo do nosso debate, traçar todo o percurso da URSS, o processo do seu desenvolvimento económico, das conquistas alcançadas na construção do socialismo desde 1917 até se ter transformado num dos países mais desenvolvidos do mundo.

Mas não podemos deixar de salientar que, em pouco mais de 70 anos, 20 dos quais foram anos de guerra ou dedicados à restauração dos danos causados pela guerra, a Rússia atrasada dos czares transformou-se num país altamente desenvolvido e o seu povo alcançou conquistas que ainda hoje, e estamos no século XXI, milhões de homens em todo o mundo não sonham sequer alcançar tão cedo.

A história mostrou que tudo o que foi realizado na União Soviética em tão curto período histórico, só foi possível graças às vantagens do regime socialista: um poder político revolucionário sob a direcção da classe operária; a propriedade social dos meios de produção; a planificação da economia (de que a industrialização e a cooperativização foram elementos essenciais); a emulação socialista, o papel do Partido Comunista e a participação activa e consciente das massas populares na direcção e construção de uma sociedade sem exploradores nem explorados.

A Revolução de Outubro exerceu, e exerce ainda, uma enorme e inquestionável influência em todo o mundo na vida e luta dos povos.

Legou-nos uma herança de valor incalculável: os seus ideais, as suas realizações, essa grande experiência para a humanidade que foi a construção, pela primeira vez, de uma sociedade socialista.

Depois de Outubro, em condições históricas diferentes, em processos revolucionários diferentes, seguindo caminhos diferentes, com soluções diferentes, outros povos na Europa, Ásia, América Latina, levaram a cabo revoluções em que as experiências da primeira Revolução Socialista estiveram presentes e se revelaram nos seus traços fundamentais. E a nossa Revolução do 25 de Abril foi disso também um exemplo. E todas essas revoluções contaram com o apoio activo, a solidariedade da URSS.

Como o PCP sempre tem afirmado as revoluções não se imitam nem se copiam.

E a nossa Reforma Agrária, que foi um dos objectivos fundamentais da Revolução Democrática e Nacional e grande conquista da Revolução de Abril, comprovando questões essenciais do marxismo-leninismo relativas à Questão Agrária, apresentou características muito próprias, muito particulares. Na sua curta existência revelou enorme potencialidades para o desenvolvimento da nossa agricultura, para o desenvolvimento da nossa economia e para a elevação do nível de vida material e cultural dos trabalhadores agrícolas. Mostrou, também, que hoje, tal como há 100 anos na Revolução de Outubro, continua a ser justa a palavra de ordem:

A terra a Quem a Trabalha!

E o lema do PCP para estas comemorações: Socialismo, exigência da actualidade e do futuro