centenario | Debate «Ciência e Tecnologia ao serviço do progresso social»

Intervenção de Frederico Carvalho

Caracterização do desenvolvimento científico e do seu aproveitamento no quadro do sistema capitalista, na actualidade

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Intervenção de Frederico Carvalho

1. As duas faces da Ciência. A Ciência do Bem e a Ciência do Mal. A inevitabilidade da marcha da Ciência para novos patamares de conhecimento.

Um grande pintor francês, Paul Gaugin, que viveu há mais de cem anos, deixou-nos um quadro conhecido por “Eva junto à Árvore da Ciência do Bem e do Mal”. O quadro mostra Eva, a primeira mulher, sentada junto à árvore em cuja ramagem se enrosca uma serpente, a serpente bíblica, que leva a mulher a comer do fruto da árvore que de seguida partilha com Adão, consumando-se assim o chamado pecado original e a expulsão de ambos do jardim do Éden. É esta “Árvore” também conhecida por “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal” a origem do fruto proibido cujo consumo viria a abrir os olhos a ambos e aos seus presumíveis descendentes. É uma história simbólica que radica na convicção de que o conhecimento é fonte de poder e que como tal deve estar reservado a um grupo ou classe restrita. É neste contexto que se entende por que razão na velha Toscânia, o sábio Galileu só foi perseguido pela Igreja quando deixou de lado o latim para começar a escrever e publicar em italiano, a língua do povo. De algum modo poderá dizer-se que esse foi um acto revolucionário do grande sábio como revolucionários foram os avanços no conhecimento da natureza física que a sua obra nos trouxe.

Hoje, a evolução tecnológica a que assistimos no mundo processa-se a um ritmo acelerado. Cada uma e cada um de nós pode notá-lo nas suas vidas. Terá em maior ou menor grau consciência dessa evolução, das potencialidades que lhe estão associadas e também de eventuais consequências no curto e médio prazo. O grau de consciência da situação que se vive é diferente, consoante a informação que a cada um chega, em regra escassa e tendenciosa, e na medida em que possa ser assimilada criticamente no contexto particular da sociedade ou grupo social em que nos inserimos, vivemos e trabalhamos.

Importa dizer que, para o bem ou para o mal, a evolução tecnológica é inevitável, como é inevitável a procura de conhecimento novo sobre o mundo natural, obtido através da investigação científica que faz avançar a Ciência, e cria as condições que proporcionam essa evolução tecnológica.

E importa dizer também que se não é possível nem desejável travar (e menos ainda impedir) a procura de conhecimento novo, seja sobre o mundo natural seja sobre os fenómenos sociais e a evolução das sociedades humanas, é possível e absolutamente vital saber de que forma são aplicados os conhecimentos novos e como podemos influir sobre essa aplicação. Quer dizer, por um lado, o avanço imparável da Ciência e, por outro, as suas aplicações tecnológicas com um impacte directo nas nossas vidas. Seja um telemóvel seja uma central nuclear.

A vida das sociedades é moldada por forças cuja natureza e correlação, também elas em constante evolução, determinam a utilização que é dada ao conhecimento científico e tecnológico e a própria orientação dos objectivos do trabalho científico.

No mundo capitalista desenvolvido, lá onde corporações sem pátria, dominadas pelo grande capital privado que persegue obstinadamente o lucro, a ciência é refém dos seus interesses dominantes.

2. Caracterização do trabalho científico, nos nossos dias e no quadro do sistema capitalista: quais as suas vertentes, onde se desenvolve e com que objectivos

Nos países da OCDE-Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico, o número de investigadores activos a tempo inteiro, é de cerca de 4 milhões e 600 mil. Os Estados Unidos contabilizam mais de uma terça parte destes (cerca de 1,3 milhões), Entretanto, a China e a Federação Russa que não são membros da OCDE, em conjunto, atingem o número de 2 milhões de investigadores nas mesmas condições (ETI). Os ainda 28 países membros da União Europeia, em conjunto, ficam-se por 1 milhão e 800 mil.

Parte destes investigadores, em qualquer dos países citados e de um modo geral, também, dedicam-se à chamada investigação fundamental ou básica, que é no fundo a procura do saber pelo saber: as origens do Universo que coabitamos ou a razão dos sismos ou da actividade vulcânica no planeta, entre muitas outras questões. Estes trabalham na sua grande maioria em centros de investigação públicos, muitos de grande dimensão fora do universo universitário ainda que por regra, mantenham ligações com ele. Entretanto, verifica-se que mais de 2/3 da despesa com actividades de investigação nos países da OCDE, no seu conjunto, são financiados pela indústria, sendo que cerca de 70% dessa despesa global corresponde a trabalho executado no seio das próprias empresas. Esta importante fracção do trabalho científico que interessa às empresas e é directa ou indirectamente custeada por elas consiste no essencial em trabalho conducente ao aperfeiçoamento de produtos ou processos já existentes ou à criação de novos. Não se trata de um investimento desinteressado que que vise um melhor conhecimento do mundo natural sem outro objectivo que não seja o prazer intelectual do ser humano. O grande capital procura simplesmente o lucro e conta para isso também, em regra, com o apoio e colaboração do poder instituído, governos e outros órgãos de soberania, que frequentemente ele próprio ajudou a instalar e que efectivamente controla.

3. Nem Deus, nem César, o dinheiro é tudo”. A Ciência refém das estratégias de poder. A negação da Ciência pelo grande poder económico

Com diferentes vestes e sob diversas formas, a ambição do poder tem um longo passado que o presente reflecte e que importante ter em conta na construção do futuro. Alain de Lille, filósofo e pregador, que viveu no século XII da nossa era, sintetizou desta forma o sentido dos poderes dominantes na sociedade de então, dizendo: “nem Deus, nem César, o dinheiro é tudo”.

No quadro do sistema capitalista, a Ciência é refém das estratégias de poder. Os investigadores que trabalham no sector empresarial privado, em grandes conglomerados industriais e na indústria em geral, como no sector dos serviços, mas também, em certos casos, em instituições públicas, geridas directamente pelo Estado ou por ele concessionadas a entidades privadas, de que são exemplo, nos Estados Unidos, os grandes laboratórios do chamado Departamento da Energia onde são aperfeiçoadas ou desenvolvidas novas armas e sistemas de armamento, designadamente nucleares, vêm condicionadas de diversas formas, liberdades fundamentais. Como a liberdade de associação para defesa dos seus direitos laborais, mas também a própria liberdade de expressão sempre que esta possa pôr em causa os interesses do grande capital.

É hoje comum falar-se de situações de denúncia de práticas lesivas da saúde das populações e do ambiente natural, práticas prosseguidas por grandes corporações que acabam na perda do emprego e em perseguições de vária ordem a investigadores que se vêm envolvidos em projectos cujas consequências práticas sabem avaliar, pela natureza das suas funções, e que repugnam às suas consciências. É no domínio da comunicação social e das tecnologias da transmissão e registo de informação privilegiada que vão sendo conhecidas situações com maior impacte público, de perseguição implacável a homens e mulheres, designadamente, técnicos especializados, que por dever de consciência entenderam pôr a nu aspectos essenciais de processos conspirativos secretos desenhados em verdadeiros ninhos de víboras que aspiram ao controlo geopolítico do planeta, que é a nossa casa comum. Recordemos os casos de Edward Snowden, Julian Assange ou Chelsea Manning e tantos outros que permanecem na sombra.

A exploração do trabalho pelo capital assumindo no concreto diversas formas, visa sempre o mesmo objectivo: o aumento dos lucros que vão engordar os dividendos a distribuir por accionistas privados.

A Monsanto Company, ou simplesmente, Monsanto, sediada nos EUA, é um dos casos conhecidos mais notáveis de comprovado comportamento criminoso nos planos ambiental e da saúde humana, A Monsanto adquirida o ano passado pela Bayer por 66 mil milhões de dólares, é uma corporação multinacional dos sectores agro-químicos e da agro-tecnologia biológica. É o principal produtor de sementes transgénicas e do herbicida Roundup (o mais usado em Portugal) cuja principal componente é o composto químico designado por glifosato que surge associado à promoção da utilização das sementes transgénicas, de milho e soja, designadamente. De acordo com a Organização Mundial de Saúde há fortes indícios de que o glifosato tem efeitos cancerígenos. A Monsanto, montou uma espécie de milícia privada que fiscaliza a utilização das suas sementes para impedir que sejam utilizadas mais do que uma vez sem o pagamento de direitos e chegou mesmo a desenvolver sementes estéreis para impedir a reutilização. Esta política é responsável por centenas de milhares de mortes de pequenos agricultores, nomeadamente, na Índia, que, arruinados e endividados, puseram fim à vida. Neste caso, a origem do desastre foi a utilização de sementes de uma variedade transgénica de algodão vendidas pela Monsanto. Um outro marco relevante na actividade desta multinacional foi a produção do chamado “agente laranja”, desfolhante largamente usado pelos EUA no Vietnam.

Citando a Dra. Vandana Shiva, cientista indiana e activista de causas sociais internacionalmente reconhecida, este “genocídio de pequenos agricultores às mãos da globalização” tem na sua origem as “políticas de agricultura industrial e de liberalização do mercado comandadas pelas corporações. À sombra dessas políticas, as corporações transformam a agricultura para maximizar os seus lucros, e através do mundo, os lavradores tornados vulneráveis pela dívida acumulada, põem fim à própria vida, enquanto crianças morrem de fome e malnutrição.”

Eis o sistema capitalista no seu “melhor”.

Ao lado destes fenómenos trágicos, perfilam-se outras formas de exploração do trabalho assalariado agravadas sobretudo no espaço do mundo menos desenvolvido mas de algum modo presentes em todo o mundo dominado pelo grande capital privado. Trata-se das formas modernas de escravatura que afectam os trabalhadores mais vulneráveis. Todos sabemos que muitos países asiáticos suportam a canga do trabalho forçado para abastecer os membros das classes mais afortunadas nos países ricos com peças finas de vestuário, alimentos de qualidade, aparelhos electrónicos de última geração e diversos outros bens de consumo corrente.

4. Ciência e progresso social

Falámos da árvore da Ciência do Bem e do Mal. A Ciência do Bem existe, está presente entre nós, mas a sua contribuição para o bem-estar e a qualidade de vida das mulheres e homens que connosco habitam o planeta é extremamente desigual consoante o local que habitam e o seu estatuto social. Para que a Ciência do Bem prevaleça e possa conduzir ao desaparecimento das mais extremas desigualdades na distribuição da riqueza, que conhecemos, são necessárias transformações sociais de tal profundidade que bem podemos apelidar de revolucionárias. Só uma luta de massas consequente, com uma orientação e etapas correctamente definidos, nos poderá levar até lá. Afigura-se correcto afirmar que essa luta está latente e os seus afloramentos da mais diversa natureza e amplitude vão surgindo aqui e além quotidianamente. Nos dias de hoje, deve ser um objectivo central sempre presente na consciência e na acção de cada um de nós, a defesa da paz, a luta pela abolição da arma nuclear e contra a desumanização dos confrontos nos teatros de guerra que interessa ao imperialismo. A primeira contribuição da Ciência para o progresso social deve ser dada modestamente nos campos da educação dos jovens mas também na dos adultos, e não só em países remotos mas na nossa própria terra. Deve ser dada também no campo da saúde e da prevenção da doença, da melhoria das condições sanitárias, das infra-estruturas de distribuição de água e energia, nas comunicações. Deixemos para os vindouros a pesquisa de água em Marte ou a construção de uma colónia na lua.